quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Mudanças na organização e na gestão do trabalho na escola e Concepções e processos democráticos de gestão educacional: o problema da apropriação falsa dos nomes



Isaac Sabino CARDOSO1


                  A década de 90 é marcada pela palavra “mudanças” na educação brasileira, inclusive de alguns termos como de “Administração” para “Gestão”. Destaque para a Lei 9394/96 e principalmente os artigos 12 e 14 que assimilaram conceitualmente “descentralização” e “Gestão Democrática” para junto da comunidade educacional o que fez nascer uma nova perspectiva quanto à escola, embora em estágio de transição. Esse estágio dar-se por conta de um conflito geracional que passa pelo entendimento de alguns conceitos que circundam o meio educativo, mas com ampla resistência errônea, às vezes inconsciente, dos que falam pelo modelo mais velho de escola.
                    O dilema acerca de nomear a “coisa” pelo nome que verdadeiramente a expressa remonta a antiguidade grega. Sócrates, por exemplo, vivia perguntando aos seus conterrâneos se eles sabiam o significado das palavras que nomeavam os atos como coragem ou virtude. Depois de uma série de questionamentos as pessoas que se deixavam interrogar pelo filósofo percebiam que o que eles faziam devia receber outro nome, menos aquele que eles estavam habituados. Tal situação acontece desde o início da década de 90 com o termo “gestão” voltado para educação. Segundo Dalila (2002) há um entendimento quase tácito entre os pesquisadores da área de que o termo “gestão” é mais amplo e aberto que “administração”. É bom lembrar que em anos anteriores só se falava em administração escolar.
                  No uso do termo “administração” o diretor da escola é nomeado e está sempre preocupado em organizar a burocracia do órgão com vistas a atender pedidos da hierarquia superior. Nesse sentido a escola é percebida como uma realidade objetiva, neutra e amplamente racional. Como o foco é o diretor e as autoridades que centralizam o planejamento, não há participação de todos os atores da realidade escolar. Forte na década de 80, tal modelo foi muito criticado e pedido à sua substituição pelo vocábulo “gestão” por agregar democracia, autonomia, responsabilização, uma escola subjetiva, crítico-social e promotora de debates acalorados em sua realidade.
                   A questão socrática retorna quando todo diretor de escola atual se diz “gestor”, mesmo estando na direção por vias políticas (indicado); sempre preocupado em atender aos pedidos burocráticos da secretaria ou da regional de educação; mobilizado na confecção de uma escola objetiva e neutra ao seu em torno: com pouca participação das famílias nas reuniões e na tomada de decisão. É um exemplo clássico de uma palavra que não expressa a realidade. Com tais características não se tem gestores e sim administradores.
                     Não que “administração” seja um problema por completo. A razão, a eficiência e eficácia do ato são de suma importância no bom funcionamento da coisa pública, mas esta época, culturalmente, é mesmo do fazer “gestão” com todas as suas características. A não apropriação deste termo é problema porque fere diretamente a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) impedindo, na prática, a aplicação dos artigos 12 e 14 que podem ser resumidos em “descentralização” e “Gestão Democrática”.
                   Só para se ter uma ideia de um conflito de interesses, no artigo 12 há o pedido para que os estabelecimentos de ensino elaborem e executem o seu projeto político pedagógico (PPP).  Elaborar o PPP para um “administrador indicado” é sair de uma zona de conforto que é vertical hierarquicamente e entrar numa zona horizontal marcada por um debate constante com familiares e servidores de forma que todos os interesses sejam discutidos, refutados ou aprovados. É muito trabalho. Todo o restante dos incisos do artigo chama a responsabilidade da escola para a escola. Como os diretores não querem assumir tal responsabilidade dividindo os erros ou acertos com pessoas simples, a direção, iludida por uma falsa sensação de que é melhor ficar do lado mais forte, que é a secretaria ou a regional, prefere ser meros executores a gestores de fato.
                  O artigo 14 é mais forte e subentende-se dele a necessidade do incentivar, por parte dos sistemas de ensino, a entrega da gestão da escola a comunidade escolar de forma a incrementar na instituição órgãos que efetivem a democracia. Segundo Heloísa Lück (2013) essa iniciativa é a superação do modelo estático [...] que desconsidera a necessidade de criatividade, iniciativa e discernimento em relação a dinâmicas interpessoais e sociais [...] que entende a escola como do governo e não da sociedade. O processo educacional é dinâmico e de difícil previsão, por conta disso se torna incontrolável por um poder central.
                   Esses dois artigos podem facilmente serem resumidos pela necessidade de “descentralização” e “Gestão Democrática” e a mais de duas décadas têm despertado uma nova perspectiva no mundo escolar, embora seja claro que esse período ainda seja embrionário haja vista perdurar características viciosas do momento anterior travestidas com as palavras atuais. Um exemplo disso, de palavra que também não corresponde com a realidade, mas amplamente autoproclamada por quem cuida da escola, nos dias de hoje, é “descentralização”. Sócrates estivesse aqui, ele perguntaria ao diretor: - mas, você sabe o que é descentralização?
                    É3 o outro problema de nome que não corresponde com a realidade. “Descentralização” é um nome autoexplicativo. Por si só já traz no seu bojo o seu significado. Mas, para quem tem dificuldade de saber se a sua escola é descentralizada ou não, há uma palavra que é a prova dos nove. A palavra é “identidade”. Uma escola descentralizada possui sua identidade própria, ela se difere das demais em tudo: no seu fazer pedagógico, com um jeito particular de promover suas avaliações, seus eventos culturais e o trato com seus servidores. Até no uso do uniforme escolar que os alunos vestem se percebe a identidade do colégio, ou o contrário – a centralização de um diretor, de um governo. A escola descentralizada não se parece com nenhuma outra. Heloísa Lück (2013) apud Cunha (1995) diz que descentralização existe mesmo é no sistema americano de ensino, onde as famílias se sentem totalmente responsáveis pelas escolas, “... cada vila ou cidade constitui um sistema escolar inteiramente autônomo. O Estado apenas dá algumas diretrizes de caráter extremamente geral e compensações financeiras, [...] enquanto o governo federal apenas promove programas e mobiliza debates”. Mas, então o que é isso que acontece na escola brasileira? Não é “descentralização”, não?
                     O que acontece com a escola no Brasil é o que o pessoal do Direito chama de “desconcentração” que é quando há a divisão dos respectivos órgãos central administrativo em escala hierárquica (Oliveira 2012). No caso da educação, o órgão superior é a secretaria ou a regional e os órgãos inferiores são as escolas. De forma alguma isso é “descentralização” e por conta disso não há autonomia e sim subordinação. “Uma tutela ainda pelo poder central, mediante o estabelecimento de [...] normas centrais [...] e do controle na prestação de contas das unidades escolares aos poderes centrais” Heloísa Lück (2013).
                   Montou-se um sistema e usou-se a língua como manipulação. Só na ficção já tinha acontecido algo assim, basta ler 1984 de George Orwell. No livro um governo totalitário tem um controle das palavras, liberando-as, modificando-as ou as proibindo, e consecutivamente controlando os cidadãos daquele estranho mundo. O mesmo tem acontecido no meio educativo brasileiro. Mudam-se os termos, mas o cerne é o que os governos sempre querem. O pior disso tudo é ver pessoas cultas como o diretor da escola se deixar usar como peão de xadrez. Dos dois um: ou os diretores de escolas atuais não sabem o verdadeiro significado das palavras, ou eles representam o modelo velho de escola travestidos com as palavras atuais. Mesmo prevalecendo uma ou outra das duas ideias, há perspectivas muito boas que apontam que a educação passa por um processo embrionário de transição e que em bem pouco tempo a verdadeira “descentralização” e consecutivamente a verdadeira “gestão democrática” se efetivaram de fato na educação brasileira.

         REFERÊNCIAS

FRASSON, Antonio Carlos,:JUNIOR, Constantino Ribeiro de Oliveira. METODOLOGIA DA PESQUISA CIENTÍFICA. São Luís, Maranhão : 2010
Lakatos, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica 1 Marina de Andrade Marconi, Eva
Maria Lakatos. - 5. ed. - São Paulo : Atlas 2003.

Lück, Heloísa. Concepções e processos democráticos de gestão educacional/ Heloísa Lück. 9. Ed – Petrópolis, RJ : Vozes, 2013. Série: Cadernos de Gestão

Oliveira, Dalila Andrade. Política e Gestão da Educação / organizado por Dalila Andrade Oliveira e Maria de Fa´tima Félix Rosar – Belo Horizonte: Autêntica, 2002

Oliveira, João Rezende Almeida. Instituições de direito público e privado / João Rezende Almeida Oliveira, Tágory Figueiredo Martins Costa. – 2. ed. reimp. – Florianópolis : Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília] : CAPES : UAB, 2012.        

PAVIANI. Jayme. Ética e aprendizagem em Platão. HYPNOS, São Paulo, número 27, 2º semestre 2011, p. 246-259

PLATÃO. Ménon. Tradução de Ernesto R. Gomes. Lisboa: Edições Colibri, 1992.

PLATÃO. Fédon. Introdução e comentários de Maria Arminda Alves de Sousa. Porto: Porto Editora, 1995.

                     

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